A Gestão do Medo legitimando o Estado Penal


Ricardo do Espírito Santo Cardoso Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2006).
Especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito em parceria com o JusPodivm (2008), Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais em parceria com Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu – IDPEE (Universidade de Coimbra/Portugal) (2010). É professor de Direito Processual Penal na Faculdade Maurício de Nassau

O Estado Penal é o resultado da implementação de um Direito Penal fundamentado no movimento de Lei e Ordem, que idealiza uma criminalização exacerbada de condutas e o recrudescimento da legislação criminal. Isso tudo aliado à atmosfera do medo e da insegurança em que vive a população brasileira, que é bombardeada a todo o momento pelo sensacionalismo de uma mídia faminta por audiência e que faz da violência o seu maior produto, vendendo a idéia de que o crime e o criminoso estão em toda parte.

A idéia do endurecimento da legislação penal é incutida no imaginário popular, criando a impressão de que a solução dos problemas sociais que assolam o país ocorrerá por intermédio do Direito Penal, desde que este seja aplicado da forma mais dura possível, tendo a finalidade de amedrontar aqueles que, possivelmente, ousariam a descumprir o ordenamento repressor.

Porem, o Direito Penal, como o mais repressor de todos os ramos do ordenamento jurídico, somente poderá ser utilizado quando estritamente necessário, isto é, quando indispensável à proteção dos bens mais importantes e vitais ao convívio em sociedade, cuja proteção, pelos demais ramos do ordenamento jurídico, não seja eficaz o suficiente para evitar a prática da conduta danosa pelo agente (GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. 2 ed. Niterói, RJ: Editora Impetus, 2006). O Direito Penal tem como função a proteção de bens jurídicos, ou seja, a proteção de valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva, sob ameaça de pena. Contudo, a proteção de bens jurídicos realizada pelo Direito Penal é de natureza subsidiaria e fragmentária, sendo o Direito Penal a ultima ratio.

Um Estado que se diz Democrático de Direito, e que tem o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos (art. 3º da Constituição Federal), não pode utilizar um Direito Penal de características autoritárias, pois o Direto Penal versa sobre um dos mais importantes bens, a liberdade do indivíduo. O Estado brasileiro cada vez mais se afasta de seus objetivos, o abismo social fica cada vez maior com o passar dos anos, surgindo uma sociedade carente de recursos básicos para o desenvolvimento digno de sua população.

Uma sociedade carente é terreno fértil para o surgimento de conflitos e a proliferação da violência, sendo a desigualdade social a grande responsável pelo aumento das estatísticas criminais. E é nesse contexto que surge a necessidade de um olhar crítico sobre a verdadeira função do Direito Penal, como assevera Juarez Cirino dos Santos, “as funções não declaradas ou os objetivos reais do Direito Penal que permitem compreender o significado político desse setor do ordenamento jurídico, como centro da estratégia de controle social nas sociedades contemporâneas” (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006).

O Estado brasileiro, aproveitando-se da atmosfera do medo instalada na sociedade, levianamente prefere utilizar o discurso de Lei e Ordem ao invés de promover as melhorias necessária no âmbito social, ou seja, investir numa reestruturação da educação, saúde e trabalho. Neste contexto, surge a figura do Direito Penal meramente simbólico, utilizado para acalmar os ânimos de uma sociedade completamente abalada pela falência de um Estado que se declara falsamente social.

Nesse ambiente de insegurança, também promovido pelos meios de comunicação de massa - que se manifestam diante da ocorrência dos delitos sempre propondo soluções ligadas à neocriminalização ou à neopenalização - as proposta são sempre dirigidas ao aumento das hipóteses típicas ou ao recrudescimento das penas já existentes, servindo de munição para um poder legislativo vigarista que faz do discurso crime/pena sua plataforma de campanha política. O Direito Penal simbólico passa a ser o escudo protetor do Estado ineficiente, que vem através de uma legislação inconsistente meramente emergencial - tendo em vista que a mesma é produzida completamente dissociada dos estudos criminológicos -, tentar encobrir as mazelas de um contexto de abandono estatal.

A legislação de urgência passa a ser a regra, e a legislação criminal é editada de acordo com os acontecimentos em nossa sociedade, criando uma anomalia sistêmica, pois, na maioria das vezes, nossa legislação emergencial deixa de observar princípios fundamentais assegurados pela Constituição Federal da República. Um bom exemplo disso, e não pode ser esquecido, foi à edição da famigerada lei dos chamados crimes hediondos, elaborada sob o argumento de resolver o problema da criminalidade crescente, em especial a extorsão mediante seqüestro, cuja publicação se deu em 26 de julho de 1990. Hoje, a quase dezoito anos de sua publicação, pode-se afirmar que a Lei de Crimes Hediondos (emergencial) apenas violou diversos preceitos constitucionais e nada resolveu quanto à prática delituosa, pois as estatísticas só fizeram aumentar desde a sua publicação.

Outro exemplo é a discussão acerca da maioridade penal, inflamada pelo triste caso do menino João Hélio, no qual um de seus algozes era um menor de dezoito anos. Criou-se uma verdadeira comoção nacional, que, instigada por setores da sociedade, viu no Direito Penal a solução para resolver o problema do descaso e abandono em que vivem os jovens brasileiros, esquecendo que o nosso maior problema, como concluiu Gilberto Dimenstein (Folha de S. Paulo de 25.02.07, p.C9), “não é de maioridade penal, mas de menoridade dos adultos” (GOMES, Luiz Flávio. Maioridade penal e o direito penal emergência e simbólico. Disponível em, acesso em 28/04/2007).

Mais uma vez fica clara a utilização de um Direito Penal meramente simbólico e emergencial que nada resolve e que tem pouca ou quase nenhuma eficácia prática na solução dos conflitos relacionados à criminalidade. Concordando com Jesús - Maria Silva Sánchez, resta demonstrada que “a expansão do Direito Penal se apresenta como produto de uma espécie de perversidade do aparato estatal, que buscaria no permanente recurso à legislação penal uma (aparente) solução fácil aos problemas sociais, deslocando ao plano simbólico (isto é, ao da declaração de princípios, que tranqüiliza a opinião pública) o que deveria resolver no nível da instrumentalidade (da proteção efetiva)” (SILVA SÁNCHEZ, Jesús - Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, Série as ciências criminais no século 21; v. 11, p.23). O Estado faz do simbolismo do Direito Penal sua maior arma na construção ilusória de um Estado de Direito preocupado com o bem estar social.

Mas nada é por acaso. A legislação criminal é um forte instrumento de controle social, e é através desse instrumento que o Estado implementa suas políticas públicas, deixando de atacar os verdadeiros problemas sociais, os geradores de conflito/violência, transmitindo a falsa idéia de que é através da lei que os conflitos serão resolvidos. É nesse momento que o Estado deixa de cumprir os seus objetivos previstos em sua Constituição, pois são sonegados da população os meios, os instrumentos básicos para que a mesma possa se desenvolver sem que seja necessário a utilização de saídas de emergência (o delito) para a realização de seus anseios pessoais.

Outro aspecto de alta relevância é o caráter seletivo do Direito Penal. O sistema penal da forma como se apresenta, não se destina a punir todas as pessoas que cometem crimes. Essa seletividade se dá de duas formas, através da criminalização primária, com a escolha por parte do Estado de quais condutas devem ser proibidas, na qual será imposta uma pena para o transgressor da ordem proibitiva; e a criminalização secundária, que ocorre no momento em que o transgressor da norma é punido.

A seletividade do Direito Penal é intrínseca a esse ramo do ordenamento jurídico, pois, sua seletividade surge desde o momento da formulação de condutas criminosas. Assim, valores de determinados grupos sociais, das classes dominantes, prevalecerão sempre em detrimento das classes pobres e marginalizadas.

O Estado ainda não acordou para o fato de que ao Direito Penal somente deve importar as condutas que ataquem os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade. Enquanto o Direito Penal for máximo, enquanto houver a chamada inflação legislativa, o Direito Penal continuará a ser seletivo e cruel, escolhendo, efetivamente, quem deverá ser punido, escolha esta que, com certeza recairá sobre a camada mais pobre, abandonada e vulnerável da sociedade.(GRECO, Rogério. Ob. Cit., p. 158.)

A escolha do Direito Penal como meio necessário para solucionar problemas estruturais e sociais de uma sociedade, é a grande causadora da instabilidade de uma sociedade e a principal fomentadora da proliferação da violência. Resta claro que o Estado jamais poderia responder os anseios de uma sociedade através do sistema criminal.

Referencias Bibliográficas:

GOMES, Luiz Flávio. Maioridade penal e o direito penal emergência e simbólico. Disponível em, acesso em 28/04/2007.
GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. 2 ed. Niterói, RJ: Editora Impetus, 2006.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús - Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006.