O Juiz Contaminado


Ricardo do Espírito Santo Cardoso Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2006).
Especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito em parceria com o JusPodivm (2008), Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais em parceria com Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu – IDPEE (Universidade de Coimbra/Portugal) (2010). É professor de Direito Processual Penal na Faculdade Maurício de Nassau

Palavras chave: Prevenção, Princípio da Imparcialidade, Pré-julgamento, Prova Unilateral.

1 INTRODUÇÃO

A moderna concepção de um Estado Democrático de Direito, garantidor das liberdades individuais, impõe a superação de institutos jurídicos autoritários impeditivos à concretização dos direitos fundamentais, tendo em vista a ordem Constitucional vigente ser um instrumento democrático que traz em seu bojo o respeito incondicional aos direitos e garantias fundamentais do ser humano.

A ordem constitucional brasileira exige a implementação de um processo penal de matizes eminentemente constitucionais, ou seja, deve ser implementado um processo penal democrático, responsável pela limitação do arbítrio estatal. Nesse contexto, o respeito ao princípio da imparcialidade do julgador é fundamental na construção de um processo penal de matizes democráticas, e não há como construir um direito processual penal sem garantir as partes direitos iguais na demonstração de suas pretensões.

O presente trabalho tem por objetivo evidenciar que, na construção de um direito processual penal moderno, exige-se o respeito intransigente a imparcialidade do julgador, e que o instituto da prevenção, que é um critério residual utilizado pela sistemática processual penal brasileira para fixar competência, é, na verdade, uma violação ao juiz imparcial. A imparcialidade é o princípio fundamental para a legitimação do exercício do poder jurisdicional; quando o Estado trouxe para si o poder-dever de solucionar os conflitos sociais, trouxe também a obrigação de exercer esse poder de forma equidistante sob pena de tornar arbitrário.

O poder jurisdicional é fundamentalmente forjado na ideia da imparcialidade do Estado-Juiz, pois não há como deferir legitimidade à atuação do Estado na solução de litígio de terceiros se não estiver ali a garantia de que o fará sem a presença de interesses particulares. Nesse aspecto, o processo penal somente será válido com o exercício de juízes independentes, garantidores dos preceitos constitucionalmente assegurados.

A relação processual penal exige a presença de um juiz garantidor, que participe como um mero espectador na produção de provas, preservando-se para que sua atuação seja eqüidistante, promovendo sempre o equilíbrio entre a acusação e a defesa. Portanto, não pode ser admitido na relação processual nenhum tipo de dispositivo que seja capaz de viciar a imparcialidade do julgador.

Destarte, é imperioso que o magistrado julgador da ação penal fique imune, ou seja, afastado da persecução criminal em sua fase administrativa, possibilitando, assim, que o contato do magistrado com as provas ocorra somente na fase de instrução processual, na presença dos dois pólos processuais acusação e defesa. Somente pode ser permitido ao magistrado o contato com provas contraditadas, sob a égide do princípio do contraditório e da ampla defesa.

Sem a garantia de que o julgador apenas terá contado com provas devidamente contraditadas, estar-se-ia admitindo violação gravíssima ao próprio poder jurisdicional, tendo em vista o flagrante desrespeito ao princípio da imparcialidade. Toda estrutura do processo penal moderno deve estar lastreada na presença do julgador imparcial, haja vista as diversas garantias que a circundam, em especial o princípio do juiz natural e a adoção do sistema acusatório, dentre outros. A sistemática processual brasileira foi construída sobre a base de um regime jurídico autoritário, isso porque foi utilizado como espelho o processo penal fascista italiano. A promulgação da Carta Magna de 1988, instrumento democrático, trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro uma contradição insuperável, que é interpretar um instrumento jurídico de natureza autoritária à luz da Constituição Federal de 1988 de natureza democrática.

É, nesse contexto, que se questiona a validade da regra do instituto da prevenção uma regra infraconstitucional, que de forma residual fixa competência quando os demais critérios de fixação de competência são insuficientes para determinar a competência de determinado juízo.

A prevenção é responsável por fixar competência de julgadores que, de alguma forma, tiveram contato com as provas da investigação criminal produzidas unilateralmente, sem que fosse possibilitada à defesa se manifestar sobre tais provas. Esse trabalho tem o objetivo de demonstrar como que a observância da regra da prevenção pode trazer pré-juízos para a relação processual penal. Buscou-se fazer uma comparação do juiz prevento com a figura do juiz de instrução, demonstrando que tal dispositivo tem o condão de violar a imparcialidade do julgador, e que consequentemente trata-se de um dispositivo inconstitucional.

É entendimento inerente a esse trabalho, de que todo juiz que teve contato direto com provas produzidas pela acusação sem o crivo do contraditório, torna-se juiz impedido de julgar a causa penal, pois esse contato prévio com a prova representa mácula insuperável ao princípio da imparcialidade. E, na relação processual, em especial a penal, jamais poderá ser admitido, a presença de um juiz parcial, que não tem capacidade de atuar como garantidor. A prevenção nos termos do art. 83 do Código de Processo Penal representa um retrocesso para o Direito Processual Penal moderno, além de ser uma incoerência, pois a proteção à imparcialidade está inserida em todas as regras do ordenamento jurídico brasileiro, em especial a Constituição Federal de 1988.

Assim, é importante a superação do instituto da prevenção como regra residual de fixação de competência, para que possa ser entendida como uma regra impeditiva de atuação de juízes que praticaram algum ato na fase preliminar, passando a ser considerado imparcial todo aquele que for prevento. Desse modo, garantido, à relação processual a justa atuação do magistrado, este fica livre de qualquer dúvida quanto à sua imparcialidade, proporcionando aos jurisdicionados maiores garantias e tranqüilidade de que a prestação jurisdicional será efetivamente adequada.

2 SUPERANDO A PREVENÇÃO COMO CRITÉRIO DE FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA

A prevenção é um dos critérios residuais de fixação de competência que o Código de Processo Penal brasileiro traz em seu bojo, determinando que, quando houver mais de um juiz igualmente competente, a competência será fixada em decorrência daquele que se antecipar em relação aos outros e praticar qualquer ato decisório.

A sistemática processual penal brasileira através do instituto da prevenção permite que o julgador da causa penal possa ter contato com os atos de investigação criminal iniciados pela polícia judiciária ou pelo órgão do Ministério Público, determinando, logo após, que, na fase processual, esse mesmo juiz julgue a Ação Penal. Sendo assim, o Juiz que irá julgar a futura Ação Penal já tem um prévio conhecimento dos fatos e provavelmente já formulou um juízo de valor com relação ao acusado e ao crime que lhe é imputado, ou seja, a prevenção permite que o julgador se posicione em relação ao fato criminoso que está sendo atribuído ao indiciado, comprometendo sua imparcialidade, e dessa forma, permite a existência do juiz inquisidor, figura incompatível com o processo penal democrático.

A prevenção é amplamente aceita pela doutrina e jurisprudência brasileira, que, de forma acrítica, repetem o quanto estabelecido no Código de Processo Penal, que tem em sua essência um caráter inquisitivo, tendo em vista que é uma cópia mal feita do fascista “Código de Rocco” (Código de Processo Penal Italiano), sem ter a consciência de que aplicar a prevenção da forma como prevê o Código de Processo Penal brasileiro, pode significar uma afronta Constitucional por violar a imparcialidade do julgador, pedra angular do Direito.

Segundo Carlos Henrique Borlidio Haddad, em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a aplicação da prevenção nos termos do art. 83 do CPP é justificada por alguns doutrinadores da seguinte forma:

“O juiz já tomou conhecimento, mesmo que em escala superficial, de fatos cujo mérito será por ele apreciado, segundo a regulamentação nacional, torna-se mais habilitado ao julgamento da causa. O prévio conhecimento obtido indiciária ou integralmente, propiciaria melhor julgamento em virtude da maior soma de elementos que compõem a esfera de saber do julgamento.” (HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Um Veto e o Malabarismo Psicológico. Boletim IBCCRIM, ano 16, n. 193 de dez. 2008.)


Desse modo, percebe-se que o sistema inquisitorial que norteou a construção estrutural da sistemática processual penal brasileira está de forma latente impresso na citada justificativa, pois coloca o magistrado na posição contrária a do juiz espectador, admitindo a presença de um julgador envolvido com a prévia produção de provas.

A prevenção, na verdade, permite a existência de um juiz quase instrutor, aquele que atua na fase preliminar na busca de provas, ou melhor, tendo o contato direto com provas produzidas de forma unilateral e completamente distante do princípio do contraditório e da ampla defesa.

Fazendo uma pequena referência ao juiz instrutor, figura estranha à sistemática processual penal brasileira, percebe-se que a investigação judicial, com a figura do juiz instrutor, sistema adotado por alguns países, é que confere ao juiz o poder de presidir as investigações. Aury Lopes Jr. nos ensina que “o juiz instrutor obra como um verdadeiro investigador, atuando de ofício e sem estar submetido ou vinculado a petições do Ministério Público ou da defesa, que são meros colaboradores”.(LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p238.) Sendo assim, o juiz de instrução atua independentemente do posicionamento do Ministério Público, preside as investigações de acordo com sua conveniência, aplicando medidas cautelares reais ou pessoais de ofício, até mesmo em desacordo com o Ministério Público.

Esse sistema de investigação criminal preliminar, antecedente à ação penal, tem como responsável o magistrado que fará o papel do delegado de polícia ou o de promotor de justiça, ficando encarregado de receber a notícia crime, buscar as informações necessárias para elucidação da prática criminosa, atuar pessoalmente no comando da polícia judiciária, determinando perícias, observando o local do crime, ouvindo os envolvidos com o fato criminoso, inquirindo testemunhas dentre outros provimentos.

Nesse tipo de investigação é mais do que óbvio que o juiz não poderá julgar a futura ação penal. Segundo Aury Lopes, existe nesse sistema de investigação uma presunção absoluta de parcialidade, ficando, portanto, o juiz instrutor proibido de julgar a causa.

O sistema processual brasileiro não contempla esse tipo de investigação preliminar, pois na sistemática do ordenamento jurídico pátrio a investigação fica a cargo da Polícia Judiciária ou do Ministério Público (ressalta-se que existe divergência doutrinária, quanto aos poderes investigativos do Ministério Público). Entretanto, existe semelhança entre o juiz instrutor e a atuação do juiz na fase de investigação preliminar. Essa afinidade ocorre devido à participação de um magistrado nas investigações, pois nessa fase podem ser aplicadas medidas cautelares que limitam direitos fundamentais (busca e apreensão, prisões provisórias etc.) e que por essa razão necessitam que sejam adotadas por um órgão com poder jurisdicional.

A semelhança aqui argüida reside no fato de que ambos os juízes terão contato com a prova produzida unilateralmente - o juiz instrutor, porque foi o próprio que as produziu, e o outro porque teve que fazer uma análise de provas produzidas sem o crivo do princípio do contraditório e da ampla defesa. Essa situação é de extrema relevância para o futuro desenvolvimento da ação penal, tendo em vista que o juiz, para ser garantidor, primeiramente tem que ser imparcial e descomprometido com as provas informativas da opinio delicti do presentante do Ministério público.

O juiz, ao participar de uma investigação criminal, deferindo medidas cautelares, necessariamente terá que se envolver com as provas dessa investigação, inclusive valorando uma a uma, e dessa forma se vinculando psicologicamente a elas. Nesse contexto, qual seria a diferença do juiz de instrução? Tudo bem que ele não busca a prova pessoalmente, mas acaba tendo um contato substancial com essas provas, a ponto de formar o seu juízo de valor sobre aquela acusação e aqui independe se esse juízo será pela condenação ou pela absolvição, o problema é a existência de prejulgamento do fato, antes mesmo de existir uma ação penal.

Dessa forma, o magistrado que atuou na fase preliminar deferindo ou indeferindo medidas cautelares requeridas pelos investigadores será igualmente comprometido como se estivesse produzindo, gerindo a produção das provas, pois no fim das contas ele acabou analisando as provas unilaterais e ao final estará completamente contaminado e conseqüentemente terá formado juízo de valor, porque querendo ou não, o juiz acabará se posicionado quanto ao mérito da causa penal quando fizer a análise das provas.

Logo, a análise crítica sob o instituto da prevenção é de extrema relevância, tendo em vista que o princípio da imparcialidade é o pilar estruturante de todo o poder jurisdicional.

A imparcialidade fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz que teve contato prévio com produção de prova unilateral, verificando a existência material de um verdadeiro juiz instrutor.

Geraldo Prado, escrevendo sobre o sistema acusatório, aborda aspecto importante sobre a imparcialidade, e esta é perfeita para fundamentar a violação ocasionada através da prevenção, senão vejamos o quanto exposto pelo professor:

“A imparcialidade do juiz, ao contrario, exige dele justamente que se afaste das atividades preparatórias, para que mantenha seu espírito imune aos preconceitos que a formulação antecipada de uma tese produz, alheia ao mecanismo do contraditório.” (PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. (LOPES, José António Mouraz – Atutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, nota de rodapé (216) p.77.). ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p 175.)


É brilhante o posicionamento do professor; não há como compatibilizar a atuação do juiz que analisa provas unilaterais antes do início de uma ação penal, com a atuação desse mesmo juiz, na fase processual. O processo penal brasileiro é regido sob a imposição constitucional do princípio da presunção de inocência, art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988, portanto, não pode o processo iniciar tendo como julgador um juiz convicto da culpa do acusado.

A imparcialidade daquele que julga uma ação penal tem que ser livre de qualquer suspeita, não pode ter a menor mácula; além de ser imparcial, também é necessário que se tenha à aparência de imparcialidade. A preocupação com o respeito ao princípio da imparcialidade é afeto a todos os sistemas jurídicos democráticos existentes no mundo; sem a imparcialidade do julgador morta estaria à intervenção estatal para solucionar os conflitos de sua sociedade.

Nesse sentido, vale transcrever a nota de rodapé extraída do livro de José António Mouraz Lopes, que ressalta a importância de exigir sempre um juiz imparcial:

“A imparcialidade do magistrado é indiscutivelmente o elemento mais importante no desenvolvimento do processo penal, não é por acaso que no XV Congresso Internacional de Direito Penal, da Associação Internacional de Direito Penal (A.I.D.P.), foi aprovado à chamada “Recomendações de Toledo para um Processo Penal Justo” que impôs expressamente a presença de juiz imparcial no julgamento dos processos, o que pressupõe que a fase de investigação deva ser levada a cabo por uma entidade distinta daquela a quem cabe a fase de julgamento. Assim o juiz do julgamento não deve participar em actos das fases anteriores. É ainda altamente recomendável, que o juiz do julgamento seja distinto daquele que decide sobre o recebimento da acusação.”(LOPES, José António Mouraz – Atutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, nota de rodapé (216) p.77.)


Avalizando esse entendimento é o pensamento de Niklas Luhman, quando afirma que “o não comprometimento do juiz antes do momento de apreciação das provas é assim um dos requisitos fundamentais à legitimação da decisão” (LUHMAN, Niklas, Legitimação pelo procedimento, Brasilia: Editora Universo de Brasilia, 1980. APUDE LOPES, José António Mouraz – Atutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.72.). Pois, como poderia ter credibilidade uma sentença proferida por juiz que, antes mesmo da existência de uma ação penal, e, por conseguinte, a instrução criminal, já era conhecedor das provas que pudessem levar a condenação do acusado? Portanto, com a razão Niklas Luhman, quando afirma que “o princípio da imparcialidade do juiz proporciona às partes a confiança de que o juiz não se compromete especificamente antes do processo” (LOPES, José António Mouraz – Atutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.57, nota de rodapé (194).).

A preocupação em garantir um julgador imparcial desvinculado da investigação criminal, ou pelo menos, das provas produzidas nessa investigação, infelizmente não faz parte da doutrina e jurisprudência brasileira e, muito menos, do legislador brasileiro, que cada vez mais tem dado força aos juízes inquisidores. Entretanto, a doutrina e os tribunais alienígenas, em especial o europeu, ao longo dos anos vêm demonstrando uma especial preocupação em coibir a atuação de juízes contaminados pelas provas da investigação.

Nesse sentido, o trabalho exercido pelo Tribunal Europeu de Direitos do Homem – TEDH, seguido por alguns tribunais superiores dos países europeus, em especial a corte constitucional italiana e a espanhola, demonstra uma atuação fortemente expressiva para coibir a existência de juízes que de alguma forma atuaram na fase investigativa, pois entendem que existe uma mácula em seu juízo de convencimento no momento em que vão sentenciar, ou seja, falta-lhe imparcialidade.

Não é por acaso que o princípio da imparcialidade tem grande importância na jurisprudência do TEDH. É ela que garante todo sistema jurídico vigente em qualquer Estado que se filia aos princípios democráticos, exercendo um controle sobre as múltiplas funções das partes no desenvolvimento dos atos processuais, em especial a gerência sobre a produção das provas, para garantir que o resultado processual virá do exercício livre na apreciação da prova produzida única e exclusivamente pelas partes, acusação e defesa, resguardado sempre o princípio do contraditório e da ampla de defesa.

O Tribunal Europeu de Direitos do Homem há muito já vem firmando o posicionamento de que o juiz prevento é juiz impedido de julgar a causa penal, pois a prevenção é geradora de parcialidade, já que coloca o juiz em contato com provas unilaterais que serão posteriormente submetidas ao crivo do contraditório.

Também é importante ressaltar que o direito português tem essa preocupação em garantir a imparcialidade do julgador vedando a prevenção, visto que Portugal é vinculado a Convenção Européia dos Direitos do Homem – CEDH, sendo inquestionável e notório o seu alinhamento com a jurisprudência do TEDH.

O TEDH aborda o princípio da imparcialidade sob os aspectos das vertentes subjetivas e objetivas, demonstrando, assim, que não pode o juiz atuar na fase da investigação de modo que tal participação marque definitivamente o seu convencimento em relação àquelas provas produzidas. É importante ressaltar que a participação do juiz capaz de viciar o seu julgar na ação penal é aquela em que o julgador fez uma análise da prova unilateral, praticando um ato decisório na fase de investigação criminal.

É válido trazer para esse trabalho um breve histórico em que o TEDH começou a direcionar as suas decisões para esse aspecto da imparcialidade ora explanado.

Nas palavras de José António Moraz Lopes:

“Num dos primeiros e paradigmático casos – De Cubber c. Bélgica – teve-se por parcial o magistrado que presidiu a um tribunal coletivo, quando o mesmo magistrado desempenhou funções de magistrado instrutor no mesmo caso, podendo, por isso ter já formado uma opinião prévia que se pese na balança, no momento da decisão.
Naquele que foi um dos mais impressivos casos, até pela posição inovadora e não méis seguida pelo tribunal – Hauschild c. Dinamarca, 24-5-1989 – o TEDH declarou que o resolução sobre a prisão preventiva é bastante por si mesma para provocar a “contaminação” objetiva do juiz no processo.

No caso Piersarck, se bem que anterior ao Hauschild, o Tribunal tinha já declarado a falta de imparcialidade de um tribunal coletivo presidido por quem tinha desempenhado antes funções de Ministério Público, como chefe de departamento que tinha sido encarregado de instruir, não obstante não ter tido intervenção directa.

Portugal foi também um contendor numa das decisões do TEDH onde a questão da imparcialidade se discutiu, nomeadamente no seu sentido objetivo.” (LOPES, José António Mouraz – Atutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 83.)


A jurisprudência do TEDH é pacífica em determinar o impedimento do juiz que participou da fase investigativa vir a participar da fase processual, ou seja, atuar na ação penal. Segundo José António Moraz, a jurisprudência do TEDH, “desenha-se, no sentido de consolidar a tutela da imparcialidade quando estão em causa intervenção do juiz numa fase anterior à do julgamento” (Ibidem, p. 84.).

Trazendo a baila as lições do professor Aury Lopes Jr., este ensina que:

“Enfrentando esses resquícios inquisitoriais, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), especialmente nos caos Piersack, de 01/10/82, e de Cubber, de 26/10/84, consagrou o entendimento de que o juiz com poderes investigatórios é incompatível com a função de julgador. Ou seja, se o juiz lançou mão de seu poder investigatório na fase pré-processual, não poderá, na fase processual, ser o julgador. É uma violação do direito a um juiz imparcial consagrado no art.6.1 do Convênio para a proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950. Segundo o TEDH, a contaminação resultante dos pré-juizos conduzem à falta de imparcialidade subjetiva e objetiva.” (LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.132.) (grifos nosso)


Ainda citando o professor Aury Lopes Jr.,

“A investigação preliminar suponha uma investigação subjetiva sobre o fato, o contado direto com o sujeito passivo e com os fatos e dados pode provocar no ânimo do juiz instrutor uma série de pré-julgamentos e impressões a favor ou em contra do imputado, influenciando no momento de sentenciar.” (Ibidem, p.132.)


Toda a jurisprudência do TEDH traz uma concepção de que o conceito da imparcialidade tem uma relação visceral com o princípio do justo processo. As decisões do TEDH têm reflexo sob vários sistemas de processo penal diferentes, e isso ocorre porque todos têm uma única base fundamental, que é o princípio democrático que agracia o sistema de imparcialidade do julgador.

Todo o quanto exposto até o momento traz a consagração pelo TEDH, de que o juiz que atua na investigação preliminar está prevento e não pode atuar na fase processual, na ação penal, pois é um juiz contaminado pelas provas produzidas na investigação.

A Corte Constitucional italiana – La Corte Constitzionale – em seu julgado nº 432 de 16 de setembro de 1995, consagrou o entendimento do TEDH, ao considerar que o juiz que atuou na fase preliminar decretando uma prisão é um juiz impedido de julgar a causa penal. Nesse caso, a corte Constitucional italiana, considerou que a não observação da incompatibilidade do juiz, ocasionaria mácula a autenticidade e exatidão do processo de formação da convicção do tribunal, que está associada à garantia constitucional do devido processo.

Alegou a Corte Constitucional italiana que a medida cautelar, a prisão preventiva, não pode ser considerada puramente processual, investindo, até mesmo através da análise de provas, ocasionando uma verificação do mérito. E que, portanto, a adoção de uma medida restritiva de liberdade pessoal gera dúvida quanto à imparcialidade e serenidade de uma avaliação posterior, quando do julgamento do mérito da ação penal.

Daí, a Corte Constitucional italiana ter julgado inconstitucional o dispositivo processual penal que permitiu a participação do juiz da investigação na ação penal, entendendo que essa participação ensejaria uma flagrante violação ao princípio da imparcialidade, maculando e pondo em risco a credibilidade da decisão processual.

A sistemática processual penal brasileira consagra o instituto da prevenção, e não só permite como determina que aquele juiz que atua na fase de investigação proferindo algum ato decisório será o juiz competente para julgar a futura ação penal relacionada à investigação criminal que ele atuou. Esse flagrante desrespeito ao princípio da imparcialidade é acriticamente contemplada pela grande maioria da doutrina e jurisprudência brasileira, inclusive pelos tribunais superiores que repetem essa regra de “imparcialidade” em seus regimentos internos.

Carlos Henrique Borlido Haddad, em artigo publicado no boletim jurídico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, artigo intitulado de “Um Veto e o Malabarismo Psicológico”, ensina-nos que tanto o STF quanto o STJ, em seus regimentos internos aplicam a regra da famigerada prevenção para atribuir competência para seus ministros ficarem vinculados a determinadas causas. Senão vejamos:

“Os regimentos internos de tribunais costumam definir a prevenção do relator em variadas hipóteses. O Art. 69 do regimento intero do Supremo Tribunal Federal dispõe que “o conhecimento do mandado de segurança, do habeas corpus e do recurso cível ou criminal torna preventa a competência do relator, para todos os recursos posteriores, tanto na ação quanto na execução, referentes ao mesmo processo.

Não é diferente a regulamentação contida no regimento do Superior Tribunal de Justiça, co o acréscimo de que “a distribuição do inquérito e da sindicância , bem como a realizada para efeito da concessão de fiança ou de decreto de prisão preventiva ou de qualquer diligencia anterior à denúncia ou queixa, prevenirá a da ação penal (art. 71).”(HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Um Veto e o Malabarismo Psicológico. Boletim IBCCRIM, ano 16, n. 193, dez. 2008, p. 18 a 19.)


Rômulo Moreira afirma a importância de superar a prevenção como critério responsável pela fixação da competência, tendo em vista ser a prevenção uma afronta a imparcialidade do juiz, argumentando da seguinte forma:

“Entendemos que tais disposições não deveriam constar de um diploma processual de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção, longe de atrair a competência judicial, deveria excluí-la, visto que a prática deste ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do julgador.

Observa-se, por exemplo, que para se decretar a prisão preventiva o Juiz deve obrigatoriamente, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, admitir a “Existência do crime e indícios suficientes de autoria”, o que já significa um posicionamento quanto ao mérito da causa penal e, por conseguinte, não deixa de ser um pré-julgamento. ”(MORREIRA, Rômulo de Andrade. O processo penal como instrumento de democracia. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n.318, 21 ma. 2004. p.10. Disponível em:< HTTP://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5224>. Acesso em: 05 de ago. 2008, p.10.)


Também externando esse entendimento, Danilo Von Becker Modesto escreve o seguinte:

“A prevenção também vai de encontro à imparcialidade porque, ao tecer juízos valorativos sobre o mérito do processo (ou do pré-processo), o magistrado, que não deixa de ser um ser humano, se vincula a sua decisão passada, aleijando sua capacidade de enxergar outra versão que não a escolhida por ele naquela fase pré-processual.”(MODESTO, Danilo Von Beckerath, O critério da prevenção como afronta à imparcialidade do juiz criminal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a.3, nº 242. Disponível em:Acesso em 8 jul. 2008.)


O princípio da imparcialidade é flagrantemente violado sempre que houver a atuação de uma magistrado na fase pré processual, tendo em vista o seu contato com provas obtidas de forma unilateral, podendo até fazer um exame de mérito, na decisão que decreta uma prisão, por exemplo, promovendo um juízo de valor sobre aquela investigação. Esse pré-juízo dificilmente será deixado de lado quando for o momento de julgar a ação penal que foi deflagrada em consequência da investigação criminal.

Imagine que, em uma investigação criminal, um determinado juiz é chamado a decidir sobre a decretação de uma prisão preventiva. Ao decidir positivamente, após analisar as provas presentes nos autos da investigação, o magistrado informa que a materialidade do crime está provada e que os indícios de autoria são fortes. Como será na fase processual? Esse juiz poderá, no final do processo, proferir uma sentença absolutória lastreado na insuficiência de provas; poderá reconhecer que o fato não constitui crime, ou terá sua decisão condicionada a sua postura anterior ao início do processo? De acordo com a prevenção, esse será o juiz que julgará a ação penal, e esse primeiro juízo valorativo das provas unilaterais sobre o fato certamente irá orientá-lo em todas as decisões no que disser respeito à autoria e materialidade, fulminando a atuação da defesa em sua produção de prova negativa relativa a esses aspectos da ação penal.

Todo ato jurisdicional na fase preliminar exige do juiz um juízo de cognição sobre as provas unilaterais, não obstante seja uma cognição um pouco mais superficial que na sentença. Portanto, na fase da ação penal, onde será realizada toda instrução processual no intuito de produzir as provas necessárias para a condenação do acusado, o juiz da causa já tem posicionamento firmado quanto à acusação, pois teve contato com uma prova de validade apenas para a acusação e dela emitiu juízo de valor. Tão logo, não há como não existir um forte prejuízo devido ao pré-julgamento da causa pelo juiz prevento, ferindo mortalmente a relação processual que para ser legítima exige a presença de um julgador imparcial e descomprometido com provas pré-produzidas.

Além do mais, com poderá o juiz absolver o acusado por negativa de autoria ou inexistência de crime, quando ele, na fase preliminar, decidiu pela decretação da preventiva, alegando existir fortes indícios de autoria e materialidade? Opera com razão Danilo Modesto quando afirma a não existência de juiz imparcial quando sua decisão pode afetar sumariamente seus brios.

A prevenção, fixando competência de juiz que atua na investigação, é inadmissível em um processo penal moderno, alinhado aos preceitos constitucionais. A prevenção tem que ser uma causa de exclusão de competência, devendo reconhecer o comprometimento do julgador com as provas da investigação, impedindo-o de julgar a ação penal por faltar-lhe a imparcialidade necessária ao processo penal.

A participação do magistrado na faze preliminar contribui para que ocorra um pré-julgamento, levando a ocorrência de “um processo psicológico interior que leva a um pré-juízo sobre condutas e pessoas” (LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p 134).

Corroborando a esse entendimento, é o ensinamento de Aury Lopes Jr. ao afirma que “crer na imparcialidade de quem está totalmente absorvido pelo labor investigador é o que J. Goldschmidt denomina erro psicológico. O juiz que atua na fase preliminar é um juiz instrutor, está completamente contaminado, envolvido com as provas da investigação criminal.

Permitir que um juiz comprometido com a prova de uma investigação criminal venha a julgar a futura ação penal a ela vinculada é um grande erro, viola de forma inaceitável a imparcialidade necessária para o desenvolvimento tranquilo e eficaz do processo penal.

Aceitar a prevenção como critério de fixação de competência é aceitar o jogo de cartas marcadas, e aceitar que o acusado inicie na ação penal já condenado, a depender da forma como o juiz atuou na fase preliminar. Portanto, como afirma Aury Lopes Jr., expondo o que Franco Cordeiro adverte, “que nessa estrutura domina o primato dell’ ipotesi sui fatti, geradora de um quadri mentali paranidi. O cenário é doentio: devemos nos preparar para atuar com juízes fazendo quadros mentais paranóicos”(Ibidem. p. 134 e 135.).

Nessa perspectiva, o julgador já inicia a ação penal sabendo que irá condenar ou absolver, em que pese na maioria absoluta dos casos a condenação ser a regra, procurando apenas confirmar seu pensamento em uma das provas já produzidas e apenas ratificadas na fase processual. Concordando com esse entendimento, adverte Geraldo Prado, “Um juiz que tem contato com os dados da investigação, que não passaram ainda pela defesa, tende a assumir a versão inicial como definitiva. Com isso, o direito de defesa vira peça de teatro. O processo desaparece”.(PRADO, Geraldo. Entrevista a Mariana Ito em Grampo Limitado, Prisão não fica mais humana só porque atinge ricos, entrevista enviada via e-mail pelo grupo (cienciascriminais3@grupos.com.br) do curso de pós-graduação em ciências criminais do Jus Podivm, em 28 do 07 de 2008.)

É importante garantir sempre o respeito à imparcialidade do magistrado dentro do processo penal, fato que a prevenção não permite.

O Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus de nº 94641, relatora Ministra Ellen Gracie, por votação majoritária, concedeu ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Ministro Joaquim Barbosa, para anular o processo desde o recebimento da denúncia, em virtude de ofensa à garantia da imparcialidade da jurisdição. Isso porque o juiz que atuou na ação penal foi o mesmo que julgou a ação de investigação de paternidade, procedimento que colheu os elementos indiciários de crime e que vieram a ser utilizados na ação penal.

Vejamos a decisão do STF no Habeas Corpus de nº 94641:

“A Turma, por maioria, concedeu, de ofício, habeas corpus impetrado em favor de condenado por atentado violento ao pudor contra a própria filha, para anular, em virtude de ofensa à garantia da imparcialidade da jurisdição, o processo desde o recebimento da denúncia. Determinou-se a imediata expedição de alvará de soltura do paciente, se por al não estiver preso. No caso, no curso de procedimento oficioso de investigação de paternidade (Lei 8.560/92, art. 2º) promovido pela filha do paciente para averiguar a identidade do pai da criança que essa tivera, surgiram indícios da prática delituosa supra, sendo tais relatos enviados ao Ministério Público. O parquet, no intuito de ser instaurada a devida ação penal, denunciara o paciente, vindo a inicial acusatória a ser recebida e processada pelo mesmo juiz daquela ação investigatória de paternidade. Entendeu-se que o juiz sentenciante teria atuado como se autoridade policial fosse, em virtude de, no procedimento preliminar de investigação de paternidade, em que apurados os fatos, ter ouvido testemunhas antes de encaminhar os autos ao Ministério Público para a propositura de ação penal. HC 94641/BA, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, 11.11.2008. (HC-94641)

Nulidade do Processo e Imparcialidade do Juízo – 2 Em acréscimo a esses fundamentos, o Min. Cezar Peluso, em voto-vista, concluiu que, na espécie, pelo conteúdo da decisão do juiz, restara evidenciado que ele teria sido influenciado pelos elementos coligidos na investigação preliminar. Dessa forma, considerou que teria ocorrido hipótese de ruptura da denominada imparcialidade objetiva do magistrado, cuja falta, incapacita-o, de todo, para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida. Esclareceu que a imparcialidade denomina-se objetiva, uma vez que não provém de ausência de vínculos juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados jurídicos na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva), mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja ainda, de modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir. Assim, sua perda significa falta da isenção inerente ao exercício legítimo da função jurisdicional. Observou, por último, que, mediante interpretação lata do art. 252, III, do CPP (”Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:… III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão;”), mas conforme com o princípio do justo processo da lei (CF, art. 5º, LIV), não pode, sob pena de imparcialidade objetiva e por conseqüente impedimento, exercer jurisdição em causa penal o juiz que, em procedimento preliminar e oficioso de investigação de paternidade, se tenha pronunciado, de fato ou de direito, sobre a questão. Vencida a Min. Ellen Gracie, relatora, que, no ponto, não conhecia do writ ao fundamento de supressão de instância e o indeferia em relação às demais questões suscitadas. HC 94641/BA, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, 11.11.2008. (HC-94641)”


Na jurisprudência citada, o STF não se refere à proteção da imparcialidade por conta das regras da prevenção, mas fica claramente demonstrado através da fundamentação do Ministro Joaquim Barbosa e do Ministro Cezar Peluso, que o julgador que tem contato com provas que irá fundamentar uma acusação antes do início da ação penal, ficaria impossibilitado de atuar no julgamento daquele processo, pois seu envolvimento com as provas pré-processuais fulmina claramente o princípio da imparcialidade. Sendo assim, a fundamentação utilizada para conceder a ordem de Habeas Corpus, no citado julgamento do STF, também poderia ser utilizada para afastar o critério de prevenção por ser um violador da imparcialidade objetiva do julgador, haja vista permitir ao magistrado um contato prévio com as provas da acusação.

A fixação da competência através do critério da prevenção é uma antinomia; imagine o quão contraditório; uma regra que garante um juiz competente, tendo em vista que as regras de competência existem para garantir a imparcialidade dos julgadores no exercício jurisdicional, traz para o processo um juiz parcial e, por consequência, incompetente. A prevenção na verdade, seria uma causa determinante de incompetência, impeditiva, que proibisse juízes comprometidos com as provas da investigação criminal de atuarem na fase processual no julgamento da ação penal.

Nesse sentido, afirma Danilo Modesto que:

“Entendemos que tais disposições não deveria constar de um diploma processual de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção, longe de atrair a competência judicial, deveria excluí-la, visto que a prática deste ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do julgador.”(MODESTO, Danilo Von Becjerath. O critério da prevenção como afronta à imparcialidade do juiz criminal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 242. Disponível em: Acesso em: 8 jul. 2008.)


Opera com razão o professor Aury Lopes Jr., quando afirma “que estamos na contramão da evolução, querendo ressuscitar a superada figura do juiz de instrução, como negamos a evoluir, repensando a prevenção, diante da necessidade de proteção da posição do julgar.” (LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 134.) O julgador tem que ser completamente descomprometido com as partes, é o terzietà, e não só isso, não pode ser imparcial aquele que, de alguma forma, teve contato com provas sem que fosse observado o princípio do contraditório e da ampla defesa.

A prevenção fixando competência é um retrocesso, é o falecimento do julgador garantidor. Juiz prevento nos termos do Código de Processo Penal é praticamente um juiz instrutor, mas com uma flagrante diferença, ele não é impedido de julgar a causa penal, pelo contrário, ele é o julgador “competente”.

Essa famigerada figura infraconstitucional macula o juiz imparcial e em conseqüência fulmina com o sistema acusatório, pois só é possível falar em sistema acusatório, se nele estiver inserido um juiz independente desvinculado da produção de provas. A prevenção é na verdade um reflexo da natureza inquisitorial do Código de Processo Penal brasileiro, que foi elaborado tendo como parâmetro o Código de Rocco, que era declaradamente fascista.

O processo penal moderno, comprometido com princípios democráticos, submetido a uma Constituição Democrática, não pode coexistir com instrumentos autoritários, permissivos ao sistema inquisitório. Sendo assim, não há como aceitar a prevenção com fixadora de competência, até poderia existir, mas para excluir a competência e impedir a atuação no processo de juízes viciados em seu convencimento.

3 CONSIDERÇÕES FINAIS

A imparcialidade na prestação jurisdicional é fundamental na correta aplicação do direito material, em especial na esfera penal, por se tratar da liberdade humana. O atuar imparcial do julgador corresponde aos anseios da sociedade que para ter tranquilidade exige que o poder jurisdicional seja exercido por um ente desatrelado a interesses particulares, capaz de aplicar o ordenamento jurídico com equidade, respeitando sempre os princípios constitucionais e garantindo voz a todos os litigantes.

O processo penal moderno, lastreado em princípios democráticos é responsável pelo respeito ao contraditório, ao exercício livre da defesa, garantindo sempre a igualdade entre as partes, acusação e defesa. Nesse contexto, é imprescindível que o órgão julgador seja imparcial, sem vícios, desapaixonado por qualquer uma das partes, e comprometido com a ordem constitucional democrática.

A sistemática processual brasileira, como já explicitado nesse trabalho, é deficiente no respeito intransigente à ordem constitucional vigente, já que permite à atuação de julgadores parciais, comprometidos com provas produzidas antes mesmo da deflagração de uma ação penal, provocando prejuízos inquestionáveis a defesa do acusado.

A prevenção aplicada de acordo com o atual Código de Processo Penal é na verdade uma afronta ao julgador imparcial, uma vez que, conforme já explicado, a prevenção permite que o juiz da causa, preteritamente tenha contato direto com elementos probatórios capazes de viciar seu convencimento com relação à imputação. Assim, permite-se uma verdadeira antecipação de culpa, sem a existência de uma ação penal com todos os seus desdobramentos, especialmente a dilação probatória na qual as partes irão demonstrar sua pretensão convencendo o magistrado-julgador de que suas teses acusatórias ou defensivas devem prosperar.

Nesse contexto, não existe processo justo, em que se respeita a garantia fundamental do homem. A imparcialidade do julgador fica debilitada com a aplicação da regra prevista no art. 83 do Código de Processo Penal, que permite uma relação do juiz, julgador da futura ação penal, com a produção de provas promovida pelo acusador, seja ele o presentante do Ministério Público ou autoridade da Polícia Judiciária, sem que seja exercido o contraditório para que as provas possam ser contraditadas ou debatidas. Esse contato é demasiadamente prejudicial para o acusado, que na fase processual terá que demonstrar, ou melhor, travar um enorme esforço para convencer o juiz de sua inocência, invertendo totalmente a lógica processual penal constitucional, na qual todos são inocentes até que se prove o contrário.

O contato prematuro do julgador com provas unilaterais, inquestionavelmente, gera em seu subconsciente a certeza sob aquela imputação, traçando na cabeça do magistrado uma construção histórica do fato delituoso baseado apenas em provas acusatórias, e que na fase judicial, provavelmente terá seu convencimento formulado, tendo em vista que irá reproduzir seu conhecimento forjado nas provas unilaterais. Nesse contexto, o processo passa a ser um jogo de cartas marcadas, em que a defesa fará o papel de mero coadjuvante e legitimador de condenações, tendo em vista que teoricamente não pode existir processo sem contraditório e ampla defesa.

O ordenamento jurídico brasileiro, sob a égide constitucional não permite a existência de um processo penal inquisitorial em desconformidade com a Constituição Federal de 1988, e o mais importante é que não basta existir um processo penal constitucional formal, é imprescindível que seja aplicado efetivamente os princípios garantidores de um processo democrático em conformidade com a Carta Magna brasileira e, para isso, primeiramente é necessário o respeito absoluto da imparcialidade dos julgadores. Sem a presença da imparcialidade, toda e qualquer garantia Constitucional fica inviabilizada, desterrando o processo penal democrático respeitador dos direitos do homem.

A prevenção como critério de fixação de competência, na forma prevista pelo ordenamento jurídico brasileiro não mais pode existir, já passou da hora de se repensar essa forma de aplicação de competência. Esse tipo de prevenção é capaz até de violar o princípio constitucional da presunção de inocência, tendo em vista que proporciona ao julgador formular juízo de valor lastreado em provas unilaterais antes do início da ação penal, fazendo com que o acusado inicie no processo praticamente condenado, invertendo a regra constitucional na qual o juiz deve ser o garantidor das liberdades individuais, cabendo ao acusador provar o contrário.

Opera com razão o TEDH ao considerar o juiz prevento impedido de julgar a causa, por observá-lo comprometido com provas da investigação, dificultando sua atuação na fase processual em que deverá analisar provas da acusação e da defesa, e assim, dificilmente desconstituirá sua convicção formulada no momento de análise das provas unilaterais, ou seja, um juiz imparcial. Esse é uma dos maiores prejuízos que o cidadão pode sofrer na realização de uma ação penal - ter em seu processo um juiz contaminado pelas provas da investigação criminal e ser o responsável pela demonstração de sua inocência, invertendo os papéis na relação processual penal.

Não podem ser admitidos no atual estágio do processo penal democrático, prejuízos à defesa do cidadão por conta de instrumentos jurídicos que não estão em conformidade com a Constituição. A prevenção não pode continuar colocando juízes parciais na relação processual.

A superação da prevenção como critério residual de fixação de competência é fundamental para a implantação de um processo penal democrático nos ditames da Constituição Federal - esse é o primeiro passo para garantir a todo cidadão o exercício livre da jurisdição. E para que isso possa ocorrer é necessária uma mudança legislativa com relação aos dispositivos que disciplinam a aplicação da prevenção existente no Código de Processo Penal brasileiro.

Uma vez que a prevenção é um critério residual de fixação de competência e que somente é aplicado quando os critérios de competência são insuficientes, a simples decretação de inconstitucionalidade desse famigerado instituto poderia ocasionar problemas na fixação de competência, haja vista ser necessário disciplinar qual critério a ser utilizado para sanar eventuais dúvidas. É assim que o ideal seria uma mudança legislativa em que se possa inverter a aplicação da prevenção admitindo que todo juiz prevento seja considerado juiz impedido de julgar a causa penal. Dessa maneira, havendo dois juízes igualmente competentes, o prevento seria impedido de julgar, e o competente seria aquele juiz que não teve contato previamente com elementos da investigação criminal. Por outro lado, aplicar-se-ia o critério da distribuição quando existir mais de dois juízes igualmente competentes, desde que se exclua aquele que teve prévio contato com a investigação criminal. O importante é que aquele juiz que teve contato com provas unilaterais, sem o exercício do contraditório, fique impedido de julgar a futura ação penal, onde são evidentes os prejuízos advindos desse tipo de julgador, tendo em vista que um juiz não julga imparcialmente quando em sua decisão estiverem envolvidos seus brios.

A prevenção tem que deixar de ser um critério residual de fixação de competência e se tornar na verdade uma regra de exclusão de competência, haja vista ser o juiz prevento, um juiz contaminado para julgar a causa, pois lhe falta o requisito mais importante para o exercício do oficio de julgar - a imparcialidade.

O impedimento da atuação de juízes preventos no processamento das ações penais é responsável pela garantia da imparcialidade, evitando os diversos pré-juízos advindos da atuação em diversas fases processuais, que ocasiona vício na relação jurisdicional.

A atual fase do pensamento jurídico-científico brasileiro exige um rigor maior no respeito da Constituição Federal, e esse respeito passa pela garantia de um juiz imparcial, como já afirmado. Sem essa garantia o arbítrio tem campo livre para prosperar e continuar violando direitos considerados fundamentais para o respeito do indivíduo como ser humano. É importante ressaltar que o respeito a garantias fundamentas jamais favorecerá a violação de direitos. Pelo contrário, exige uma melhor prestação Estatal, na mitigação de direitos daquele que comete um crime, (não se pode esquecer que ali está se tratando de um ser humano, e essa mitigação não pode estar pautada em interesses particulares, e muito menos em emoção vingativa).

Ao Estado não é permitido agir emocionalmente, tanto é que somente está legitimado a agir de acordo com a permissão legislativa, sendo de extrema necessidade que o Estado–Juiz esteja pautado na aplicação da norma de modo imparcial e sem vinculações emocionais. Nesse sentido, a imparcialidade do julgador é pedra de toque na prestação jurisdicional perfeita, e qualquer dispositivo legal que possa trazer qualquer dúvida ou questionamento sobre a imparcialidade do julgador, deve ser extirpado do ordenamento jurídico pátrio.

Assim, a prevenção tem que excluir a competência do juiz prevento como garantia do princípio da imparcialidade, transformando o termo prevento em sinônimo de impedimento.

REFERÊNCIAS

HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Um Veto e o Malabarismo Psicológico. Boletim IBCCRIM, ano 16, n. 193, dez. 2008, p. 18 a 19.
LOPES, José António Mouraz. A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MODESTO, Danilo Von Becjerath. O critério da prevenção como afronta à imparcialidade do juiz criminal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 242. Disponível em: Acesso em: 8 jul. 2008.
MORREIRA, Rômulo de Andrade. O processo penal como instrumento de democracia. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n.318, 21 ma. 2004. p.10. Disponível em:< htpp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5224> Acesso em: 05 de ago. 2008.
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4. ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.